Platão, As Leis, VII, 796 b.
Breve fenomenologia... Basta um rápido olhar para o reino dos animais – não humanos – para nos mostrar que eles brincam, que ‘fazem de conta’ quando estão mordendo ou atacando, enfim, que jogam. Como ocorre com as questões antropológicas, o jogo de futebol é objeto de controvertidas e divergentes opiniões presentes nos diferentes níveis das relações humanas. Não raro os jogadores de futebol ouvem: ‘você só pensa em futebol’, ‘você gosta mais de futebol do que de mim’ ou então ‘que bom que vai jogar’... Aqueles que não puderam sentir o prazer de jogar dizem, com desdém, ‘que graça tem correr atrás de uma bola, um pedaço de sintético ou um couro cheio de ar, se cansar e ter ainda, ao final, a desculpa para beber cerveja com amigos?’. Quantas vezes já ouvimos, se é que não as empregamos, expressões como ‘a vida é um jogo onde uns ganham, outros perdem, uns nascem, outros morrem’ ou então ‘ganhar ou perder não é o mais importante, mas o jogar propriamente’. De tão presente que está em nossas vidas o jogo já foi objeto de letras musicais cantadas por, entre outros, Djavan e Skank. Piaget, do ponto de vista educacional, refletiu sobre a aprendizagem das regras dos jogos por parte das crianças. Cresce o interesse pelos tratamentos terapêuticos mediados pelo jogo, ou seja, pela ludoterapia. Por outro lado, do ponto de vista social, qual é o menino de hoje que não quer ser ‘Ronaldinho’? Não raro os ‘craques’ de futebol são tidos como heróis, como mitos, como padrões de vida para um grande número de crianças, independentemente das razões econômicas e sociais envolvidas no processo de imitação-projeção. Outro aspecto impressionante de se observar, do ponto de vista do jogo de futebol, é a fidelidade que os torcedores possuem em relação ao seu time tanto que, já ouvi por aí a seguinte expressão: ‘troca-se de carro, de emprego, de mulher’, e de, fato, não conheço alguém que tenha trocado de time, mesmo que ele tenha caído para a segunda ou para a terceira divisão.
Ora, poderia a filosofia, que tem o real como objeto de reflexão, desdenhar um dos seus componentes, no caso, o jogo, e especificamente o jogo de futebol? Seria coerente com seu modo de proceder se ela excluísse do seu horizonte de reflexão aquilo que não é ‘sério’ ou por que o futebol é usado como instrumento de alienação social? Mas não poderia ser a própria filosofia uma forma de alienação social?
Filosofia e jogo de futebol... Quem já não prestou atenção como os animais gostam de jogar, ou seja, de brincar, de ‘fazer de conta’ que atacam ou se defendem quando supostamente atacados? Quem já não ficou fascinado com as brincadeiras de um papagaio ou de um gato? Infelizmente, no ocidente, concedemos ênfase ao homo faber ao homo sapiens e desdenhamos sua constituição de homo ludens. Isto, por si só, constitui um indício revelador dos inúmeros preconceitos que rondam as atividades lúdicas dos humanos. Contudo, no âmbito literário, encontramos, entre outros, obras que explicitaram a dimensão antropológico-lúdica com maestria como O jogador, de F. Dostoiévsky ou O jogo das contas de vidro, de Hermann Hesse; O Jogo da Amarelinha, de Julio Cortazar.
Ora, como qualquer arte, o jogo de futebol pode ser manipulado para o bem e para o mal, como meio de diversão e de prazer ou como forma de alienação. Não está no jogo de futebol, pois, a consistência maléfica ou benéfica, mas na orientação que lhe damos. Se chama atenção o imaginário de poder, de prazer, de riqueza que ele sustenta, nem assim podemos deduzir que a sua natureza é anti-ética ou maléfica. Nesse sentido é limitada a identificação entre técnica moderna e esporte realizada por Adorno.
Traços antropológicos próprios do jogo... O jogo de futebol exerce um tal fascínio sobre quem joga ou quem o assiste, que, toma conta. A vivência do fascínio exercido pelo jogo ‘arranca’ o jogador da sua temporalidade e instaura uma espécie de experiência de eternidade ou de catarse, própria da experiência estética. O que eram as tragédias gregas senão o jogo de pertença e de distanciamento do espectador em relação ao representado e nesse ir-e-vir as pessoas refletiam sobre seu modo de viver.
Falamos, a meu modo de ver equivocadamente, em ‘resultado justo ou injusto’ de um jogo de futebol. Contudo, seu resultado, quando jogado dentro das regras estabelecidas, não envolve justiça ou injustiça. Penso que, prioritariamente, não é uma questão de justiça ou de injustiça, pois no jogo está envolvido uma dimensão antropológica que extrapola as regras morais, qual seja, os elementos da criatividade, de sorte e de azar que não podem ser reduzidos ao domínio moral do justo ou do injusto.
O jogo de futebol, paradoxalmente, envolve arte, ou seja, técnica e criação. O bom jogador não é aquele que executa as regras, mas aquele que as incorpora, joga com elas e as extrapola. Ou seja, o máximo de vivência de suas regras implica na máxima criatividade. As ‘pedaladas’ do Robinho ou o drible da ‘foca’ de Kerlon são criações artísticas possibilitadas de um lado, por rígidas regras e, de outro, pelo espaço de liberdade que o jogador possui para criar. Por isso dizemos que o jogo de futebol é também uma espécie de arte.
O jogo de futebol, para ser bem jogado, exige de quem jogue, que se entregue a ele totalmente. Não joga bem quem dá mais atenção ao público que à bola que rola dentro de campo. Nesse sentido, jogará tanto melhor para o público quanto mais o jogador esquecer-se dele e se voltar para o jogo. Por isso o jogador em tudo se assemelha ao artista, ao professor, à medida que, para jogar bem, precisa se concentrar no jogar.
A filosofia do jogo de futebol... Muitas são as lições filosóficas que o jogo de futebol tem a nos dizer. Do ponto de vista corporal-antropológico: jogar futebol, enquanto exercício físico, contribui para descarregar, além de toxinas, as tensões e estresses corroborando a conhecida máxima latina mens sana in corpore sano, ou seja, mente sã em corpo são. O corpo exige cuidados, dedicação e condicionamento físico para que possa ‘jogar bem’. Quem joga futebol, consciente ou inconscientemente, trata a vida como um todo integrado entre corpo e alma. Com isto denuncia-se a atribuição segundo a qual o corpo seria apenas um cárcere para alma ao mesmo tempo em que saltamos para fora do dualismo antropológico cartesiano que cinde res cogitans [alma] da res extensa [corpo] conferindo valor apenas ao primeiro aspecto.
Do ponto de vista ético-moral: aprender a jogar futebol implica em aprender suas regras, incorporá-las, respeitá-las o que, em última instância, significa aprender a socializar-se. A vida, como e enquanto um jogo, tem suas regras que precisam ser conhecidas e respeitadas. Sabemos das dificuldades que encontrará a criança que não aprender as regras, os limites próprios do jogo da vida. Ora, jogar futebol exige aprender a trabalhar limitações de ordem corporal [não é possível jogar bem por mais de 4 horas seguidas ou sem condicionar-se fisicamente], temporal [o jogo tem um início e um fim], social [não joga bem quem ‘gasta’ a bola como se diz, por isso o ‘fominha’ é repreendido pelos companheiros], moral [preciso obedecer o juiz para que o jogo ande bem]. Jogar futebol significa vivenciar regras morais básicas como: ser solidário, saber pedir desculpas, apoiar quem falhou num lance, conviver com o diferente, ser criativo. Quão profícuo seria para a filosofia se aprendêssemos as regras básicas e simples do jogo de futebol! Não é jogo quebrar a perna do outro; não vale passar a mão na bola durante o jogo; não é jogo pisar em cima do adversário para ganhar um determinado lance ou fazer o gol; enfim, não é jogo faltar ao respeito e ao bom senso com relação ao companheiro, ao adversário, ao juiz e à torcida. O jogador que precisa apelar à destruição do adversário para afirmar seu jogo está atestando sua incapacidade e mediocridade enquanto jogador, o que o tempo trará à luz, mais cedo ou mais tarde.
Do ponto de vista metafísico, coerente e apropriado à mobilidade do real, não se pode prever o resultado final de um jogo de futebol. Há nele uma teleologia aberta e imanente em que o jogador irrompe do seu tempo ordinário, cotidiano e instaura uma outra temporalidade que o fará, ao final, sentir-se melhor e mais pleno. Jogar futebol implica romper com a mesmice do dia-a-dia, com nossos hábitos, pois exige que aprendamos a ser criativos no tempo em que estivermos jogando. Em última instância, jogar futebol exige que sejamos ‘todo’ – corpo, mente, sentimentos, etc... – num determinado tempo o que F. Pessoa já expressou com relação à vida da seguinte maneira: Para ser grande, sê inteiro: nada/ Teu exagera ou exclui./ Sê todo em cada coisa. Põe quanto és/ No mínimo que fazes. E também não foi por acaso que Nietzsche, em Zaratustra, comparou o sábio a uma criança que joga e que brinca.
Na verdade, mesmo que não saibamos, estamos sempre jogando, ou seja, fazendo apostas, pagando por elas e recebendo seus castigos e recompensas. Desde que fomos projetados no mundo – pois nele nascemos a bordo, isto é, começamos a jogar depois que o jogo já começou – estamos jogando com sua cultura, com seus costumes, com suas regras, com suas utopias ou simplesmente estamos sendo jogados por elas. Talvez nossa dignidade nasça e se explicite justamente na arte de ser jogado e de jogar concomitantemente o que Platão já havia declarado: “deveríamos viver nossas vidas participando de certos jogos – sacrificando, cantando e dançando – de modo a nos capacitarmos a conquistar o favor divino e repelir nossos inimigos e vencê-los na luta”. Recordo aqui a afirmação de F. Nietzsche: “No considerar o mundo um jogo divino para além de bem e mal - tenho como predecessores a filosofia dos Vedas e Heráclito". Enfim, não seria um grande contra-senso ainda afirmar que, em nome da paixão pelo saber, a paixão e o prazer em jogar futebol nada teria a ver com o filosofar? Antes, no ‘jogo da vida’, jogar e filosofar, não são verbos que se convertem?
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